O Continente Verde de Edward Lear (parte IV)
- Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
- há 3 dias
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O continente verde de Edward Lear
Além de poeta, Edward Lear foi um talentoso pintor de paisagens e ilustrador naturalista. Aos dezoito anos, publicou uma coleção de quarenta e duas litografias das aves do Zoológico de Londres. O trabalho do jovem artista chamou atenção por capturar o caráter dinâmico e enigmático das aves, sem sacrificar a precisão anatômica. O método de Lear, pouco convencional na ilustração científica do século XIX, privilegiava sempre que possível o uso de animais vivos em vez de modelos taxidermizados. Outra prática incomum era que Lear desenhava dentro do aviário do zoológico, onde passava muito tempo convivendo com as aves. Um parentesco simbólico, aos poucos, foi se formando entre o artista e suas musas.
Lear retratava animais silvestres que eram trazidos de outros continentes com o intuito de serem estudados e exibidos em zoológicos e nas coleções privadas das elites londrinas. No brilhante artigo Edward Lear’s lines of flight (2012), Matthew Bevis observou que, ao trabalhar no aviário, Lear adquiria a perspectiva dupla de observador das aves e de observador de seus observadores. Entre os pássaros, além disso, Lear tornava-se mais um corpo a ser escrutinado. Bevis nota que a mirada incisiva das aves ilustradas por Lear parece sugerir o que talvez passasse batido pelos adeptos mais devotos do turismo colonial: aquele que é exposto à inspeção pública devolve o olhar.

Por experiência própria, Lear sabia o que era ser um corpo estranho aos olhos da sociedade. Aos seis anos, a epilepsia, que seria para o resto de sua vida um de seus maiores e mais penosos segredos, se manifestou nele pela primeira vez. Lear apelidou-a de “meu Demônio”. Lembremos de Freud, em O Infamiliar: “O infamiliar da epilepsia e da loucura tem a mesma origem.(…) A Idade Média atribuíra, de maneira consequente e, ao mesmo tempo, psicologicamente quase correta, todas essas manifestações de doenças a efeitos demoníacos.” Enquanto isso, na época de Lear ainda vigorava a hipótese médica de que episódios convulsivos pudessem estar etiologicamente conectados à atividade masturbatória. As tentativas fracassadas de aderir a um tratamento de abstinência o atormentavam, complicando sua já conturbada relação com a própria sexualidade. Prolífico escritor de cartas e diários, nos quais muito de sua vida íntima foi registrada, as menções de Lear ao sexo são praticamente nulas. No entanto, evidências sugerem que ele não era heterossexual e que a maior e mais significativa porção de suas paixões se destinava a outros homens.
A natureza extrovertida, espirituosa e criativa de Lear fazia dele o centro das atenções nas festas e jantares que frequentava, contudo, seus diários mostram que, sob a máscara da sociabilidade, o artista ocultava um sentimento devastador de solidão. Nos animais silvestres, e também nas crianças, com quem ele se divertia e que o adoravam de volta, Lear parecia encontrar os ecos mais fieis de si mesmo.
O Livro do nonsense, a coletânea de limeriques que consagrou Lear, foi inicialmente concebido a partir de poemas ilustrados feitos, por diversão, para os filhos de seus amigos. A convenção da época era que livros infantis fossem publicados de modo anônimo, mas Lear tinha orgulho de seu trabalho e, na terceira edição do Livro do nonsense, fez questão de assinar a capa. Outro ponto fora da curva do nonsense leariano era que ele se abstinha de intenções moralizantes, praticamente inextricáveis da literatura infantil vitoriana. Enquanto a maioria dos autores do gênero se preocupava sobretudo em escrever para os adultos que seus leitores se tornariam, Lear escrevia para as crianças que eles ainda eram. Nas palavras de Vivian Noakes:
Lear não foi, claro, o único escritor infantil da época que ofereceu aos seus leitores uma fuga de um mundo de ansiedade para um mundo de segurança e imaginação - nem todas as crianças estavam sujeitas a esses medos - mas ele foi o mais influente. Numa época em que as crianças eram soterradas com vergonha, ele procurou libertá-las. Ao enfrentar o bom e o mau sem crítica, ele lhes deu a oportunidade de chegarem a um acordo afetuoso consigo mesmas e com as outras pessoas, encorajando uma aceitação bem-humorada do estranho. (1968)
A linguagem do absurdo de Lear faz mais do que satisfazer de maneira compensatória os desejos proibidos do autor e de seus leitores, acolhendo quem se sente estranho em seu próprio mundo e criando um espaço onde o familiar e o infamiliar podem coexistir. Uma linguagem original pode ser, ainda, um meio de inscrição de ausências no texto da realidade comum.
Comentei que as embarcações verdes de Lear simbolizam, a meu ver, uma jornada inevitável que, mesmo assim, desejamos fazer. Minha experiência pessoal com essa ‘viagem’ aconteceu pouco depois de ter descoberto a obra de Edward Lear, num período em que, para lidar com os estranhos desdobramentos do momento posterior à pandemia, eu saía para longas caminhadas em um parque perto de casa. Aos poucos, nessas caminhadas, o verde ao redor foi se misturando ao verde dos poemas de Lear, que eu também lia em busca de abrigo. Comecei a sentir que o que tinha se perdido se tingia da mesma cor daquilo que sobrevivia. Continuar, de certo modo, era reencontrar. É claro que a poesia de Lear não trouxe nenhuma devolução concreta, mas ela me emprestou a matéria simbólica desse retorno, e eu reconheço, hoje, que encher minha casa de objetos verdes foi um jeito de manter viva essa trilha sutil.
A inscrição do que está ausente no tecido da realidade pode assumir muitas formas. No meu caso, foi um modo de preencher o vazio do luto, uma continuidade possível. No caso das aves trazidas à Inglaterra vitoriana, teria sido o reconhecimento de uma perspectiva ignorada; para as crianças, a chance de simplesmente existir em sua própria lógica. Assim, gosto de pensar que a fala dessa esfinge benevolente se dirige a quem precisa ouví-la, e que a língua do absurdo pode servir de território para quem busca seu lugar no mundo, um continente verde onde é possível viver.