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O Continente Verde de Edward Lear (parte II)

  • Foto do escritor: Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
    Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
  • há 3 dias
  • 5 min de leitura

Fala encontrada, fala criada


Volto um pouco. Gostaria de comunicar a vocês, por meio deste texto, uma rede difusa de ideias que começam, perpassam e terminam em Edward Lear. Conviria a esse propósito ser capaz de traduzi-las em pensamento e não somente na estranha incidência progressiva de uma cor sobre um espaço. Para meu azar, nas primeiras semanas em que tentei escrever, era somente essa cor, o verde, que me ocorria. Eu percebia a influência do nonsense de Lear nos objetos verdes da minha casa, sabia que entre eles e a emoção que me traziam havia uma história ligada às embarcações verdes que, na linguagem poética de Lear, simbolizam o destino de personagens que se lançam ao mar perigoso porque não têm escolha a não ser fazê-lo e porque fazê-lo é exatamente o que desejam. Então é certo que eu entendia e podia nomear algo, mas não o bastante. Outro tanto, talvez o mais importante, me escapava. Em vários momentos, me peguei lamentando que essa história não existisse no interior de alguém melhor equipado para narrá-la. 

É de maneira parecida, vale lembrar, que muitos pacientes se sentem em relação à tarefa psicanalítica, oprimidos pelo fardo de se descobrirem apenas parcialmente capazes de contar o que só eles podem contar. Por meio da análise, eles entram em contato com porções inexprimíveis de suas experiências e descobrem que a língua que utilizaram até ali para se comunicar é uma arena viva para a batalha entre os mecanismos de defesa da consciência e os conteúdos infiltrados do inconsciente. O sujeito no divã procura falar tudo que lhe vem à mente, porém esconde quando quer dizer e diz quando quer esconder. No manejo dessa situação escorregadia, o terapeuta e seu ferramental são fundamentais. 

Não é pequena a importância dada por Freud a uma escuta terapêutica capaz de se enredar no detalhe, nos elementos pretensamente insignificantes que emergem no discurso associativo do paciente e no relato de seus sonhos. Fazer com que o sujeito duvide da relevância ou pertinência de certos conteúdos é uma estratégia usada pela resistência para encobrir os vestígios de representações do inconsciente que irrompem na consciência.

No fascinante Mitos, Emblemas, Sinais (1989), o historiador italiano Carlo Ginzburg apresentou evidências de que Freud teria entrado em contato pela primeira vez com as ideias do crítico de arte Giovanni Morelli na época em que escrevia os Estudos sobre a histeria. Em 1874, Morelli, sob o pseudônimo Ivan Lermolieff, publicou uma série de artigos estipulando um novo método de avaliação de quadros antigos cuja autoria precisava ser determinada. Segundo ele, o foco da atribuição deveria ser realocado das características mais óbvias e replicáveis das obras (“o céu dos personagens de Perugino, o sorriso de Leonardo”) para traços tidos como insignificantes. Morelli catalogou o formato de orelhas, unhas, pés e mãos de uma série de obras e utilizou os resultados para diferenciar originais de cópias. 

O nexo entre o método morelliano e a teoria psicanalítica foi documentado por Freud no ensaio O Moisés de Michelangelo (1914), de início publicado anonimamente: 


Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicanálise, vim saber que um especialista de arte russo, Ivan Lermolieff… havia provocado uma revolução nas galerias da Europa… Creio que seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou ‘refugos’ da nossa observação.


No trecho a seguir, extraído dos Estudos, é possível identificar algo de morelliano na indicação de Freud para o trabalho com memórias visuais ressurgidas em pacientes histéricos: “Orientamo-nos então pela própria imagem mnemônica, para encontrar a direção na qual o trabalho deve prosseguir. ‘Observe a imagem mais uma vez. Ela desapareceu?’ -  ‘No todo, sim, mas vejo ainda este detalhe.’ - ‘Então isso ainda tem algum significado.’”

Ginzburg introduz o detetive ficcional Sherlock Holmes à dupla Freud e Morelli para demonstrar o que chamou de método indiciário. Os sintomas estudados por Freud, os elencos de orelhas e mãos de Morelli, e as pistas encontradas pelo olhar treinado de Sherlock Holmes, são todos exemplos da matéria constitutiva de um tipo de saber que “a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remonta a uma realidade complexa não experimentável diretamente”. 

Ginzburg situa o paradigma indiciário como herança do patrimônio cognoscitivo do humano pré-histórico, que precisou sobreviver às custas de sua aptidão para a caça. A atividade da caça, “o gesto mais antigo da história intelectual do gênero humano”, requeria uma leitura da realidade capaz de interpretar sinais ambientais para refazer, imaginariamente, o caminho percorrido pela presa. O exame da condição dual de predador e presa do sujeito pré-histórico instala uma dupla função para o ato de interpretar indícios ambientais, no caso, a de levar o sujeito em direção ao alimento e para longe dos predadores. Essa duplicidade pode servir de modelo imperfeito para o trabalho do analista, cuja escuta procura diferenciar no discurso do paciente os elementos pertencentes às resistências, que o afastam de sua meta, daqueles que o aproximam das cadeias ideativas atreladas ao sintoma neurótico. Embora essa metáfora falhe quando lembramos que o próprio agravamento súbito das resistências pode dar notícia da proximidade daquilo que mais interessa ao trabalho analítico. 

Permanecendo só mais um momento na analogia do trabalho com neuróticos como um trajeto percorrido por um terapeuta que age como um caçador de “corpos estranhos” psíquicos, é importante sublinhar que esse caminho atravessa estações intermediárias na história do sujeito até retroceder a um ponto de fixação no passado, onde localizam-se os desejos “imorredouros e recalcados da infância” (Freud, 1910). No capítulo final dos Estudos, Freud retifica a ideia de que o objetivo da terapia seria exterminar o material patogênico: “A organização patogênica não se comporta realmente como um corpo estranho, mas, isto sim, como um material infiltrado… E a terapia também não consiste em extirpar algo - disso a psicoterapia é incapaz ainda hoje - , mas em dissolver a resistência e, desse modo, abrir à circulação o caminho para uma  região até então bloqueada”. É uma diferença fundamental. A terapia não busca destruir os “corpos estranhos” que encontra, mas liberá-los, ou, ainda, através da elaboração e da assimilação, provocar uma mudança de status: que deixem a condição de infiltrados para se tornarem integrados. 

Essa transformação só é possível se estiver aliada às capacidades simbólicas do sujeito, que se reinventa a fim de encontrar um idioma mais permeável ao indizível e proibido. Para Lear, esse idioma, de alcance impressionante, foi o nonsense, concebido pela via do fazer artístico. De todo modo, quem se lança à empreitada de descobrir ou inventar o que já está lá, sabe que ela envolve esforços às vezes nada menos do que horrorosos. 

 
 
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