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O Continente Verde de Edward Lear (parte I)

  • Foto do escritor: Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
    Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
  • há 4 dias
  • 5 min de leitura

Atravessando a galeria em um pé só


A cor verde foi, aos poucos, tomando conta da minha casa. Começou com o estofado verde de algumas cadeiras. Depois, pintei as paredes do meu escritório em dois tons de verde. Mais tarde, comprei uma luminária verde e dois quadros com moldura verde, e logo um vaso de cerâmica com detalhes verdes. O tempo foi somando outros a esses objetos e detalhes até que, sem que eu percebesse, o verde estivesse por toda parte. Meu fascínio pela cor está ligado à obra de Edward Lear, um poeta nonsense vitoriano sobre quem, nessas últimas semanas, tentar escrever se provou uma tarefa quase impossível. Eu sentia que o conjunto de sua obra e vida era como uma paisagem que instintivamente cala, que pede silêncio para se acomodar por dentro.

Os psicólogos Dacher Keltner e Jonathan Haidt (2003) deram a esse fenômeno de estupefação o nome de awe ou deslumbramento, uma emoção espiritual, moral e estética. De acordo com eles, o awe é sempre composto de dois elementos: uma experiência de vastidão e a necessidade de acomodamento cognitivo para dar conta dessa vastidão. Para a filósofa Helen de Cruz (2020), o awe poderia ser o que motiva, por exemplo, cientistas a se dedicarem por anos a fio a atividades monótonas em condições insalubres sem receberem uma fração de reconhecimento proporcional ao seu trabalho. Em algum momento, talvez ainda na infância, eles teriam olhado para o céu, para uma pedra brilhante, para um animal de comportamento ou aparência interessante, e teriam visto a imensidão vitalizante de um mistério a ser desvendado. Passariam então o resto de seus dias engalfinhados com esse mistério, dedicados a desdobrá-lo e aumentar a superfície de contato a partir da qual a emoção original pudesse ser revivida.

Tomando a neurose como ponto de inflexão, dilata-se essa ideia, produzindo sobre ela uma série de modificações para que seu interior possa abrigar uma vida inteira. Desde o nascimento, a voz que chega aos ouvidos da criança, a pressão dos braços que a envolvem, o calor do seio que a alimenta, tudo provoca abalos sísmicos em seu psiquismo incipiente. As experiências do início da vida modelam a estrutura do aparelho psíquico e instalam as coordenadas de seu funcionamento. Somos fundados, como resultado, por uma história incorporada antes de sermos uma história pensada. Aquilo que por fim saberemos de nós mesmos será imbricado de lacunas provenientes de experiências anteriores aos estágios mais avançados da organização do pensamento e de omissões instituídas pelo revisionismo vigilante de um Eu que só disponibiliza à consciência o que lhe convém.

Em Estudos sobre a histeria (1895), Freud introduz o conceito de recalque, um mecanismo de defesa do Eu. O recalque faz desaparecer da mente do sujeito ideias, desejos e lembranças que, por sua incompatibilidade com “a natureza e a orientação das ideias já reunidas no Eu”, são intoleráveis, expulsando-as para um estado de consciência desconhecido pelo sujeito. Elas retornam, contudo, na condição de corpo estranho ativo, disparador do sintoma neurótico e decisivo na sua forma singular de se manifestar. Na histeria clínica, resta das ideias banidas apenas um traço mnemônico débil e o afeto que, desarraigado da ideia originária, é encaminhado para uma inervação somática em um processo chamado de conversão, produzindo sintomas somáticos, motores ou sensitivos (Pontalis e Laplanche, 1961) metaforicamente relacionados aos conteúdos obliterados. Na neurose obsessiva, o sintoma permanece na esfera intelectual e atua sobre a organização do pensamento, com o afeto mais uma vez desvinculado das representações conflituosas de origem e, nesse caso, deslocado para outras representações mentais.

Mais adiante, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud propõe que os sintomas neuróticos proporcionam uma satisfação pulsional. Trata-se da interessante descoberta que um prazer inconsciente, a satisfação pulsional, com frequência está inscrito no verso de um desprazer consciente, o sintoma neurótico. Já que a satisfação pulsional total é socialmente proibida e, de fato, impossível, o sujeito tem de se contentar com as satisfações parciais, sejam ou não elas patológicas, através das quais resgata em lampejos fragmentos de um passado perdido. Em consonância com a hipótese de Helen de Cruz, é como o cientista que, ao observar uma pétala em uma placa de Petri, busca a primavera que já passou.

A neurose forma sujeitos em contradição com eles mesmos na medida em que, em determinado momento, entraram em contato com uma cultura que recusa certos desejos e modos de ser, e tiveram de se submeter a ela. Por meio do sintoma, os absurdos manifestados no corpo do histérico e no pensamento do obsessivo exibem sem parar a estranheza implícita do sujeito neurótico.

Encontro nos limeriques, rimas nonsense escritas e ilustradas por Edward Lear, um paralelo com o absurdo da neurose. Seus personagens estão sempre em movimento, dançando, fazendo piruetas, pulando de susto. Eles parecem dominados por forças interiores ingovernáveis, habitam corpos que imitam o movimento errático das pulsões e seus comportamentos denunciam a singularidade e os paradoxos nascidos dos conflitos neuróticos.



Figura 1. Edward Lear (1812 - 1888), A moça de Juramento - 200 limeriques de Edward Lear para ler e para ver; org. e trad. Renato Moriconi - 1. ed. - São Paulo: Baião, 2024
Figura 1. Edward Lear (1812 - 1888), A moça de Juramento - 200 limeriques de Edward Lear para ler e para ver; org. e trad. Renato Moriconi - 1. ed. - São Paulo: Baião, 2024



Um exemplo é a “moça de Juramento”, cujos modos excêntricos afligem seus convivas e a fazem afundar no chão até a cintura. Ainda assim, ela sorri como se a situação lhe trouxesse um prazer secreto. Ou o homem que deixa crescer uma barba maior do que ele mesmo, porém se surpreende quando isso lhe causa problemas tão peculiares quanto a própria barba. E, ainda, o “sujeito de Rafard”, que tenta, mas cuja probabilidade de conseguir se manter afastado de suas origens é comparável à chance de que ocorra novamente a transformação dos peixes em anfíbios. 



Figura 2 e 3. Edward Lear (1812 - 1888), Sujeito com barba gigante e Sujeito de lá de Rafard
Figura 2 e 3. Edward Lear (1812 - 1888), Sujeito com barba gigante e Sujeito de lá de Rafard


200 limeriques de Edward Lear para ler e para ver; org. e trad. Renato Moriconi - 1. ed. - São Paulo: Baião, 2024
200 limeriques de Edward Lear para ler e para ver; org. e trad. Renato Moriconi - 1. ed. - São Paulo: Baião, 2024

Freud mantinha uma relação ambivalente e multifacetada com a arte, como foi bem explorado por Noemi Moritz Kon em Freud e seu Duplo (2014). Entre outras ideias, Freud defendia a noção de que a ficção funciona como um plano imaginário no qual os desejos do escritor, vedados pela realidade, podem se realizar com maior liberdade. Nesse feixe representacional, a dupla artista e obra estão lado a lado ao sonhador e o sonho, assim como à criança e seu brincar. Os limeriques de Lear expressavam, de fato, certos desejos proibidos do autor.

Desde os dezesseis anos, Lear, o mais jovem de vinte e um irmãos, sobrevivia com o dinheiro que ganhava como artista. Embora repudiasse o código de etiqueta que atrofiava a mente e os relacionamentos dos nobres e ricos da Inglaterra vitoriana, ele precisava manter boas relações com quem podia pagar por sua arte. Em uma carta à irmã, Lear confessou: “O tom monótono de apatia adotado pela alta sociedade me enfurece… De longe, minha maior vontade é explodir em risos e atravessar a majestosa galeria pulando em um pé só – mas não ouso.”

Bem, pular em um pé só é exatamente o que, num exercício de excentricidade nem sempre impune, fazem o “sujeito de Esmeralda” e o “sujeito em Córrego Novo”. Por meio dos limeriques, Lear convida os leitores a rirem da absurda tragicomédia ontológica que acomete a todos que têm a sorte - e o azar - de se verem representados ali, e a viver com ele alguns de seus sonhos impossíveis. Isso já é muito. Mas eu tentarei argumentar, nas próximas páginas, que seus feitos não param por aí.



Figura 4. Edward Lear (1812 - 1888), Sujeito de Esmeralda e Sujeito em Córrego Novo
Figura 4. Edward Lear (1812 - 1888), Sujeito de Esmeralda e Sujeito em Córrego Novo


200 limeriques de Edward Lear para ler e para ver (São Paulo: Baião, 2024), org. e trad. Renato Moriconi
200 limeriques de Edward Lear para ler e para ver (São Paulo: Baião, 2024), org. e trad. Renato Moriconi

 
 
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